6.11.08

 

Nós, os normais


" Simples reflexão sobre líderes: nem eles são mais os mesmos "

Marli Gonçalves

Só agora estou entendendo melhor a alegria e disposição com a qual foi recebida e multiplicada uma mensagem anterior minha. Demorou a cair a ficha de por que centenas de mensagens citavam e glorificavam a “minha coragem”. Juro que no começo não entendi, até porque tudo o que escrevi, além de meu próprio pensamento, simplesmente captava o que cansei de ouvir, comentários que me foram feitos e com os quais sempre concordei, além de impressões próprias e pessoais. Vida vivida - sabe como é?
Mas é que nós todos estamos vivendo há algum tempo o “momento pasmaceira”. As coisas vão acontecendo, terríveis, abusivas, e nós as vamos simplesmente assistindo. Porque amanhã virão outras, e assim sucessivamente. Todos andando em direção ao abismo, tropeçando nas ruas e calçadas esburacadas das ruas do país, em filas desordenadas, como autômatos. Paramos um pouco quando a tevê grita mais forte que mataram uma criança, afogaram outra, balearam mais uma. Continuamos a marcha. Aí a tevê nos alerta de que há uma crise – e os líderes aparecem negando, rápido, falando em ondinhas e marolinhas. Continuamos andando e vem o dia 1º, o 5, o 10, o 15, o 20... e depois, de novo, o mesmo ciclo. Enchentes, bombas, terremotos parecem tão normais, tão previsíveis! Tiroteios, balas perdidas, seguidas declarações estapafúrdias, autoridades batendo cabeça, entre si, e na mesa.
As contas e obrigações chegando por todos os poros, entrando sub-repticiamente por debaixo da porta, aquele barulho do papel rastejando no chão, boletos enfiados nas caixas de correio, chegando agora até pelo e-mail. Corra para pagar, senão eles cortam, te ameaçam. Pouco importa o que haja com você. Não pague, para ver! Não pague para ver. Quer um exemplo? Não gasto mensalmente nem 5 ou 6 metros cúbicos de gás, já que quase não paro em casa. Mas a conta é sempre de 15 metros cúbicos! Essa é a “lei”. Há anos é assim, sempre há uma tal taxa mínima, e as empresas não têm qualquer custo a mais. É assim com telefone, luz, gás, tevê a cabo. (Aliás, viver sozinho é caro, muito caro. Muitas mensagens que recebi falavam disso, das dificuldades e preços abusivos, da falta de produtos em embalagens individuais no mercado, falta de opções para pessoas sozinhas, solteiras ou não, com filhos, netos, bichos, ou não).
Nós, os normais, continuamos nossa marcha, entre murmúrios para nós mesmos, nas mesas dos bares, nos ônibus. No trânsito, parados, quantas vezes nos olhamos de um carro a outro, solidários? Mas silenciosos da boca para fora.
Nas ruas das grandes cidades deparamos com a miséria em cada esquina. Pessoas vivendo de lixo, catando lixo, se misturando ao lixo, como sacos pretos – como se estivessem fundidas a toda aquela sujeira; pessoas portáteis dormindo nas ruas, viadutos, cantinhos; crianças e mais crianças, alugadas por mães verdadeiras ou não. Nós passamos. Nós, os normais, tentamos até ajudar, mas sozinhos não conseguimos muito. Os malabaristas coloridos surgem nos faróis e até nos distraem um pouco. Somos como aquelas bolinhas que eles equilibram. Mas somos mais ainda as bolinhas que caem, agüentando desaforos de toda sorte, pensando que amanhã será diferente.
Aí ficamos doentes. Pagamos caros seguros-saúde e planos, já sabendo que quando deles precisarmos farão de tudo para que a gente sofra ainda mais um pouquinho. Mas se a gente não tem, como esperar meses por um exame na rede pública? Do que adianta ter ido ao médico, ver se estamos com diabetes, algum tumor? O que são meses? E quantos não morrem enquanto esperam?
Somos maltratados nas instituições, nos serviços públicos, nas centrais de atendimento. Os autômatos estão aborrecidos, infelizes. Vão descontar em você, e você que também é um deles pode até se aborrecer, também. Do que adianta a gente brigar com aquele único caixa do banco que enfrenta sozinho a fila quilométrica? Como lutar contra o sistema? Contra a musiquinha do telefone em que te penduram?
Nós, os normais, como sonâmbulos, continuamos caminhando, com nossas cabeças cheias. O sorriso, o bom dia, boa tarde, boa noite, o obrigado, o “dá licença”, o ”por favor”some – às vezes não são ditos nem dentro do elevador do prédio em que moramos!
Revolta total! Sair do país! Você tem passaporte? Já tentou tirar um? Se tiver papel (!!!), leva alguns meses, algumas filas. Isso se não perderem toda aquela documentação que juntou, como aconteceu com uma senhora, que me contou – estrangeira, há 33 anos aqui no Brasil, queria votar. Já desistiu.

A verdade é que nós estamos com muita coisa entalada na garganta. E engasgados. Faltam-nos forças. E nos faltam líderes, locais, globais ou universais. Faltam-nos microfones e tribunas livres onde possamos buscar as melhorias sem medo, melhorias que envolvem nosso dia-a-dia, que dizem respeito a coisas que são importantes para as pessoas, valores perdidos. Ética, cidadania, assistência viraram palavras ao vento de discursos; o bem virou merchandising.

Só assim entendi que eu dizia o que todos achavam, sobre as falsidades (de Dona Marta, logo ela!), da lerdeza do senador, das falcatruas e leviandades eleitorais que acabaram se confirmando, de duas ou três coisas mais que achei por bem definir. As pessoas pensavam, mas nunca tinham dito isso “da boca para fora”. Como um fio condutor de eletricidade à tomada, chamaram-me de “porta-voz”. Muitos disseram que eu havia tirado “as palavras de sua boca”. O que chamou muito a atenção foi que muitos, muitos mesmo, me contaram que os levei imediatamente a um despertar de suas próprias vidas, e isso se traduziu em mudanças ou em orgulho de suas próprias existências e desafios, em coisas do dia-a-dia. Que responsabilidade!
Não foi nenhum rompante inesperado de coragem. Foi só um suspiro mais alto, o que me valeu toda sorte de acusações, até a de “não existir”, ou ter “ganho para isso”.
Em compensação, daqui de onde escrevo hoje sei que falei por milhares. Já os chamo de novos amigos esses “normais” que acabaram por me tornar muito mais responsável do que ousei um dia imaginar. Porque descobri que estou lá, junto com um monte de gente também acordada, ou louca para acordar, na beira do abismo. Esperamos o alarme tocar, algo que possa nos despertar desse torpor.
E antes que a tevê grite que não há mais tempo para fazer nada.
Marli Gonçalves, jornalista, solteira, sem filhos, e pronta para acionar o alarme.
SP, 4 de novembro de 2008.

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